A PRIMEIRA BATALHA – 40 ANOS DEPOIS

É a primeira vez escrevo publicamente sobre primeira grande batalha da minha vida. Foi há 40 anos, precisamente num dia de verão em 23 de agosto de 1981. Tinha quatro anos, já a poucos dias de festejar o meu quinto aniversário em véspera das festas populares da pacata aldeia da minha mãe. Nesses dias eu estava sempre muito contente porque tinha uma admiração especial por umas máquinas agrícolas de rodas grandes conhecidos por “trator” e que eu chamava “popó” (adiante vão entender a importância desta palavra).

Estava em casa dos meus avós Eduardo e a Alzira, e aquilo que tinha tudo para ser um dia de festa, de repente tornou-se no provável último dia de vida.

Ao final da tarde, a criança sempre curiosa e irrequieta – ainda hoje em adulto – explorava os cantos mais sombrios da casa dos meus avós. Nessa mesma casa humilde onde nasceu a minha mãe, construída com a “débil” engenharia de outros tempos havia locais “interditos” a crianças … Pois havia de ser essa a maldição que me atraiu e esse local sombrio e desconhecido, sem a noção de que a morte me esperava.

A aventura exploradora pelo desconhecido havia de me levar a essa “porta maldita” onde passo a passo o chão acabou, e eu caí no escuro de um vazio de má memória que me havia de levar para o “outro lado”. Fechei aos olhos e não mais os abri …

O silêncio deixou toda a gente preocupada e numa “caça ao Vítor” descobriram-me ali, estatelado no lugar proibido sob pedras impiedosas e sem sinais de vida. Talvez uns 3 ou 4 metros, o suficiente para quebrar uma vida ainda tão curta.

O desespero instalou-se entre a família e festa estragou-se para sempre. Nunca mais o 23 de agosto teve o mesmo significado …

De urgência fui levado para o Hospital de Mirandela. Incapazes de lidar com a gravidade do meu estado de saúde chamaram o helicóptero para transporte urgente. Mas até esse maldito helicóptero havia de não poder voar nesse dia. E aqui começou a odisseia da primeira grande batalha da minha vida. Era preciso fazer um milagre, entre chegar rápido ao Hospital de Santo António no Porto, mas devagar suficiente para a minha cabeça não se mexer (havia suspeitas graves sobre a minha cervical, coluna e cabeça). Para complicar não havia oxigénio para toda a viagem (parca tecnologia de outros tempos). Parecia uma batalha perdida enquanto a minha vida lentamente de esvaia do meu corpo.

Dois grandes homens dos Bombeiros de Mirandela aceitaram essa missão quase impossível. Não havia IP4 nem autoestradas, e pelo velho Marão uma ambulância aventurou-se pela noite até ao Porto. Um enfermeiro gastou os isqueiros que tinha para não perder de olho os níveis de oxigénio e o equipamento que me mantinha ainda vivo. Apesar do cansaço daquela viagem, esses homens nunca pararam porque “tempo era vida”.

Naquela que parecia ser a minha última viagem fui acompanhado da minha mãe e da minha tia Efigénia. Chegados ao Porto com fracos sinais de vida, fui levado para a urgência intensiva do hospital … A minha mãe e a minha tia impedidas de me acompanhar passaram o resto da noite a tentar descansar numa cadeira à porta do hospital.

Era tudo contra mim, e no dia seguinte a pior notícia, havia pouco a fazer. Entrei em coma e a vida estava por um fio. Para tão tenra idade, o “fim” parecia inevitável.

Entre dias de silêncio atroz num “impasse” entre a vida e a morte, o coração ainda batia e o Vítor não se dava por vencido. Foram dias de especial sofrimento para a minha mãe, que mesmo 40 anos depois ainda se vê nos olhos dela o quanto duros foram esses dias. É o que faz de uma mãe um ser muito especial.

Instalou-se uma dúvida aterradora entre os médicos: Estaria eu já cerebralmente morto ? A minha mãe foi chamada para o derradeiro teste. Perguntaram à minha mãe qual era a parte do corpo mais sensível. Depois da resposta, o médico usou uma simples caneta “bic” para o teste final, a minha mãe jura não ter visto nada, mas o médico disse que o meu dedo mexeu, o suficiente para se perceber que não estava cerebralmente morto.

Nesses dias entre a vida e a morte, há outros relatos que apenas um grupo muito restrito de pessoas sabem, e outros registos que guardarei só para mim e comigo ficarão até ao meu túmulo.

Após uma luta intensa pela vida, o meu corpo dava os primeiros sinais de “resistência” e pouco a pouco a situação invertia-se. Já faltava pouco e oito dias depois voltei abrir os olhos, ainda a tempo do aniversário do meu pai.

Como quem recua oito dias até ao momento do acidente, imaginem qual foi a primeira coisa que disse? Isto: “Pai, o popó?“. E assim voltaram os primeiros sorrisos após dias de tanto sofrimento.

Só no pós-acidente se descobriram as verdadeiras consequências deste acidente; fraturei o crânio, tive um ataque de meningite, estive em coma, parti a clavícula direita (entretanto curada naturalmente) e o tímpano rebentado (perdi a audição direita).

Sobre quem foi a heroína disto tudo ? A minha mãe … Ela nunca desistiu, agarrou-me à vida com toda a sua força, talvez por isso eu também não desisti.

E cá estou eu, 40 anos depois, com uma saúde de ferro e com uma inabalável vontade de viver. Bem cedo – e da pior forma – aprendi que nunca baixamos os braços e enquanto houver esperança há “luta”. Foi assim – muito resumidamente – que aos primeiros e tenros anos de vida passei a minha primeira grande batalha, que moldou a minha forma de viver e ver a vida para sempre.

No final deixo um especial e muito sentido agradecimento aos Bombeiros de Mirandela e médicos do Hospital de Santo António (Porto) pela sua dedicação, carinho e cuidado em lutarem pela minha vida. A esses grandes profissionais mas sobretudo grandes almas eu agradeço e presto um público e sincero obrigado por tudo o que fizeram. Os verdadeiros heróis são estes, aqueles que pela sua conduta diária e discreta lutam por um mundo melhor e protegem o superior interesse da vida. Seja qual for o deus, crenças, raças, cores ou ideologias de cada um a vida é igual para todos os seres humanos.

Por estes dias li um pensamento intrigante que diz assim: “A vida é um sopro. E de vento em vento em vento todos se vão …” por isso brindemos à vida sem esquecer que já dizia Marco Aurélio: “A nossa vida é aquilo que os nossos pensamentos fazem dela“.

Termino com uma importante reflexão inspirada em Nelson Mandela e que é uma das regras de ouro da minha vida: “A grande glória da vida não está em nunca cair, mas em levantar-nos sempre que caímos”.